O cinema argentino tem seu modo eficaz de abordar
assuntos relevantes, em especial quanto ao nosso cotidiano. Relatos
Selvagens é uma mistura de seis histórias onde os personagens perdem o
controle em diversas situações inusitadas do dia-a-dia, algumas causadas pela
injustiça, outras pela malandragem. Mas em sua totalidade, o filme nos traz personagens vingativos e que não medem as consequências de seus atos. É um
grande filme, embora suas tramas não tenham qualquer ligação uma com a outra, é
evidente que elas trazem a mesma característica, fazendo com que a transação se
conecte tematicamente.
O filme foi lançado em 2014 e teve uma direção brilhante
de Damián Szifron, e obteve uma boa recepção do público e da crítica. Suas
histórias podem ser consideradas cada uma como curta-metragem. Pois todas elas
são diferentes. Mas é interessante essa ideia de misturar curtas diferentes e
que trazem uma particularidade em comum, transformando-os em um longa-metragem
divertido e curioso. Sua primeira história é como um prólogo do filme,
mostrando um pouco da violência e humor negro que veremos nas seguintes tramas.
Antes disso, nos créditos iniciais vemos várias fotos de diferentes animais, em
especial os predadores, talvez isso indique que os seres humanos não são muito
diferentes deles e o filme mostrará uma retratação dominada pela fúria do
homem. Teremos que falar da cada história e comentar sobre ela. Portanto, o texto
a partir daqui terá spoilers. Se você detesta spoilers, pare a leitura aqui
mesmo! Se não se importa com isso, é uma decisão sua e não minha.
1° História (Prólogo): Pasternak
Em seu prólogo, o filme começa nos mostrando algumas
pessoas embarcando em um avião. É revelado que todos os passageiros conseguiram
a passagem através de outra pessoa. Em meio a uma conversa entre dois
passageiros, eles percebem que tem algo em comum, pois conhecem um rapaz
chamado Gabriel Pasternak. Depois mais e mais pessoas no avião afirmam o mesmo,
e todas elas teve algum tipo de desafeto com esse indivíduo. A situação vira
motivo para desespero quando percebem que quem está pilotando o avião é o
próprio Gabriel Pasternak, que havia planejado tudo, desde conseguir os
passaportes e as pessoas certas das quais ele queria vingança. Gabriel estava
prestes a cometer um ato suicida levando o avião e os passageiros para
colidirem com o solo.
Percebemos nesse prólogo, uma pequena amostra da fúria do
homem e seu sentimento de vingança. Dentre as pessoas no avião, teve uma
professora que reprovou Gabriel, um amigo, uma ex-namorada, um psiquiatra e
entre outros que tinham magoado de alguma forma o jovem suicida. Esse prólogo
foi bem executado e os atores se saem bem, e não forçam na interpretação. Relatos
Selvagens já começou dando uma pequena porção do que estaria por vir,
e se você acha o ato do piloto suicida uma coisa impactante, prepare-se então
para as próximas tramas!
2° História: Os Ratos
A segunda história mostra uma garçonete trabalhando em um
restaurante em uma noite chuvosa. Ao atender um político arrogante, ela o
reconhece como o homem responsável pelas tragédias acontecidas com sua família,
e ao vê-lo no restaurante, a moça se encontra em um dilema. A cozinheira, no
entanto, a incentiva colocar veneno de rato na comida dele para se vingar.
Embora percebamos que nesse relato, a garçonete
(interpretada pela atriz Julieta Zylberberg), luta entre a vingança e a ética,
e mesmo com uma grande vontade de matar o vigarista, ela pensa nas
consequências. Já a cozinheira (interpretada por Rita Cortese), é fria e
vingativa, mesmo que o problema não seja com ela. Assim compreendemos que a
pessoa nunca é desprovida de sentimentos sádicos e vingativos. A cozinheira
chega a afirmar que são os bandidos que governam o mundo e que se uma pessoa
normal tenta fazer justiça com as próprias mãos, mesmo sofrendo as
consequências, ela estaria fazendo um bem para a sociedade. Embora tal
pensamento não seja muito certo, e não devemos incentivar ninguém a cometer
atos precipitados, o relato apresenta uma realidade dentro de muitas
pessoas que anseiam acabar com a corrupção e com a bandidagem. E fazer isso com
as próprias mãos, é algo que quase, senão todo mundo já pensou em fazer.
Conforme notamos, é um cenário diferente do prólogo. Mostra outro tipo de
situação onde o principal elemento é a vingança em relação aos acontecimentos
do passado.
3° História: O Mais Forte
Essa trama é pra mim, uma das melhores e mais engraçadas.
Ela abordará as diferenças sociais entre dois homens. Em uma estrada deserta,
um cara rico (Leonardo Sbaraglia) esta viajando com seu carro importado, e
acaba cruzando com um caipira (Water Donado) e seu carro simples, ao tentar
ultrapassa-lo, o caipira não deixa. Depois de algumas tentativas ele consegue,
mas acaba xingando o caipira, usando palavras de baixo calão e gestos obscenos.
Ao se reencontrarem na estrada, o rico tenta disfarçar para não se meter em
problemas com um cara desconhecido. Mas caipira sai do carro provoca o rico,
quebra o vidro do automóvel importado, a até faz xixi e cocô. É um momento
cômico da vingança! E cada um se deixa dominar pela raiva da o seu troco, o que
resulta em uma luta brutal e sem sentido.
Ninguém gosta de ser rebaixado pela sua classe social,
concorda? Nessa história, não há como saber quem está certo ou não. Mas que
poderia ter evitado o pior se a pessoa não se deixasse dominar pela raiva. Isso
chega a ponto de acontecer o pior para ambas as partes. A cena da briga desses
dois homens chega a ser impactante por causa do seu grau de violência, mas
também chegam a nos arrancar algumas risadas pela situação causada por esses
personagens. E o modo como termina é mais cômico ainda, dando a entender que
nem rico é mais forte do que pobre e nem o inverso. Os dois atores convenceram
com sua atuação, desde o encontro na estrada até a luta dentro do carro. Sem
dúvida parece bem realista e é claro que era esse o propósito dessa história,
se tornar bem real e chocante!
4° História: Bombinha
Este relato centra-se no engenheiro Simon Fisher (Ricardo
Darín), que trabalha com bombas. Sendo o dia do aniversário de sua filha, ele
promete chegar na hora com o bolo. Porém, algo inesperado acontece, o seu carro
é levado pelo guincho, sob a acusação de mau estacionamento, e ao tentar
resolver o mal entendido sem obter sucesso, ele ainda acaba se atrasando para o
aniversário da filha. Percebendo uma injustiça sendo feita pelo sistema
político corrupto, Simon perde o controle, chegando até mesmo a praticar atos
de vandalismo, acaba sendo preso, perde o emprego e ainda enfrenta problemas
com a família. E mesmo que tenha se resolvido partes dos seus problemas, o
carro de Simon é levado pelo guincho várias vezes e num ato de vingança, Simon
faz algo que todos sonham em querer fazer contra o sistema político de
corruptos que governam o mundo.
Após eventos inacreditáveis envolvendo o engenheiro, há
uma divisão de opiniões a respeito de seu ato, que mesmo sendo errado pode até
contribuir para uma sociedade melhor. Não é de hoje que o sistema político nos
arranca dinheiro desnecessariamente, e sem dúvida, muitos cidadãos, se
pudessem, jogaria uma bomba no lugar onde esses políticos se reúnem. A história
do homem bombinha (apelido no qual Simon Fisher ficou conhecido) mostra uma
dura realidade hoje existente e que nos rodeia e governa. Abuso de poder sempre
esteve no poder das autoridades, que exploram as pessoas. Apesar de todos esses
aspectos relevantes, fica muito claro que Simon perde o controle muito rápido e
conforme sabemos isso não ajuda muito, embora em alguns casos possam servir de
exemplo. E mesmo com uma realidade nua e crua, essa história é contada de uma
forma que nos fazem rir da situação.
5° História: A Proposta
Nesse relato, um jovem de família rica atropela e mata
uma mulher grávida na principal via de Buenos Aires e foge sem prestar socorro.
Seus pais que são muito ricos começam juntamente com o advogado da família a
arquitetar um plano para livrar o jovem da prisão. A proposta seria feita com o
humilde caseiro que deveria assumir a culpa em troca de muito dinheiro e um bom
advogado que o fará sair da prisão o mais rápido possível. Assim começa um jogo
de negociação, onde a ambição para ambos os lados fala mais alto.
Existem aqueles tipos de pessoas que para livrar um ente
querido, é capaz de tudo, até mesmo ferrar outra que nada tem a ver. Porém, há
um detalhe significativo nesse relato. A revolta da população e principalmente
do marido da vítima, que jura matar o responsável pela tragédia. Assim, o
filme segue denunciando o péssimo caráter desses personagens que se aproveitam
de suas riquezas para distorcer a realidade da forma como lhes convém. Não
importando a dor dos familiares da vítima.
6° História: Até Que A Morte Nos Separe
A última história e para a maioria a melhor de todo o
filme. A festa de casamento extremamente animada. Mas a linda e
animada festa acaba de uma forma totalmente deplorável! Isso por que a noiva
Romina (Érica Rivas) acaba descobrindo em plena festa de casamento, que seu
marido Ariel (Diego Gentile) a trai com uma colega de trabalho e que havia sido
convidada por ele a ir para a festa. E a linda festa se torna um verdadeiro
escândalo entre os noivos, causando brigas, mais traições, violência e dramas
familiares.
Esse escândalo foi um dos mais impactantes que já vi. A situação aqui retratada é talvez a mais corriqueira na
nossa sociedade. A dor de uma jovem e recém-casada ao descobrir traição do
marido em pleno casamento deve ser uma das piores dores que uma mulher pode
sentir. Mas a ocasião por mais desagradável que seja para os personagens, se
torna divertido para quem assiste. Sim, é muito engraçado ver a briga dos
noivos, falas que nos fazem rir da situação, sem contar na grande festa que
acontece junto com o alvoroço. Vale destacar a incrível atuação de Érica Rivas,
que rouba a cena, e foi ela a atriz que mais identificou a fúria do ser humano,
especialmente das mulheres que passam por situações semelhantes.
Relatos Selvagens provou ser
digno de uma verdadeira obra-prima. Nós que assistimos percebemos o que
realmente o filme quer nos repassar contando diferentes histórias com situações
curiosas do cotidiano. O filme não é nenhum pouco cansativo e prende a nossa
atenção durante suas duas horas de duração. Damián Szifron foi impecável na
direção e em cada história uma fotografia e montagem que merecem respeito.
Nenhum dos atores que participaram deixou a desejar e provou que o cinema
argentino merece seu espaço no mundo, embora hoje o cinema argentino não seja
muito conhecido, tenhamos certeza que se continuar a produzirem grandes obras
como essa, em pouco tempo conquistará o público geral e sua competência e
talento para a sétima arte serão incondicionalmente reverenciados.
NOTA: 10/10
Veja o trailer no vídeo abaixo:
Excelente filme! Perdi o final da história da Proposta (atropelamento). Poderia me dizer o que acontece no final? O pai resolve não pagar mais propina alguma e deixar o filho ser processado e julgado pelos seus atos. E aí, qual o desfecho?? Perdi... Obrigada!
ResponderExcluirOi Emily.
Excluir(SPOILERS) No final dessa história, o pai do garoto, o advogado, o caseiro e o oficial entram novamente em acordo, e o plano deles é mantido. Mas, quando o caseiro (que iria assumir a culpa) saia da casa preso pela polícia, no meio da multidão aparece o marido da grávida que foi atropelada, em um ato de vingança, acaba matando o caseiro ali mesmo na frente de tudo e de todos. É assim que termina.