APOSTASIA (2017)

Quando algum filme aborda temas ligados à religião está sujeito a dividir opiniões, e principalmente quando toca em temas polêmicos que afetam diretamente a vida dos indivíduos, que podem chocar as pessoas que não conhecem muito sobre determinada crença ou incomodar a aqueles que professam sua fé com muito entusiasmo. No caso da religião Testemunhas de Jeová, já não é novidade ver um filme que fale sobre eles, por exemplo, em 2008 teve o filme dinamarquês To Verdener, que chamou atenção para as regras polêmicas tomadas pelo grupo religioso e as consequências que há em desobedece-las.

Ontem, eu assisti a um novo filme ligado a esse tema referente a esse grupo religioso, o filme intitulado Apostasy lançado em 2017, mas que apenas em julho desse ano é que o filme se espalhou em diversos países. É uma produção britânica independente, sendo escrito e dirigido pelo estreante Daniel Kokotajlo e estrelado por Siobhan Finneran, Sacha Parkinson e Molly Wright.

O filme conta sobra uma família de Testemunhas de Jeová, a mãe chamada Ivanna (Siobhan Finneran) é devota a sua religião e cria suas filhas de modo que elas cresçam fieis às diretrizes da Organização que elas consideram ser a única religião certa na Terra. Sua filha caçula Alex (Molly Wright) sofre de uma doença hematológica, que após seu nascimento foi preciso realizar uma transfusão de sangue para que salvasse sua vida. Mesmo a contragosto da família, que consideram transfusões de sangue uma violação da lei de Deus, o hospital teve que forçar o procedimento para que livrasse da morte a jovem vida inocente. E com isso, Alex cresce com sentimento de culpa acreditando que Jeová não a considera uma pessoa digna, e como resultado disso, ela sempre anda a questionar sua relação com Deus, apesar de seguir à risca tudo que lhe é imposto.

Já a filha mais velha Luísa (Sacha Parkinson) à medida que cresce vai começando a questionar sua fé, mas especificamente quando não se tem certeza de que vão morar no paraíso terrestre, uma vez que apenas Jeová escolherá quem vai ou não, ela também está fazendo faculdade, que embora não seja proibida pela sua religião, a escolha pelo ensino superior é fortemente desaconselhada pela comunidade. No entato, Luísa acaba cometendo um pecado considerado grave e é desassociada da religião, e a partir disso sua família terá que cortar os vínculos que até então tinham, apenas podendo conversar o necessário.

Apostasy tráz à tona um tema polêmico e muitas vezes oculto da sociedade, embora a religião das Testemunhas de Jeová seja bastante educativa e produz pessoas de boa índole, há esse lado negro por trás das dependências do chamado Salão do Reino. Ao contrário do que os simpatizantes ou defensores dessa comunidade religiosa possam afirmar, o filme é totalmente fiel à realidade e não é parcial em praticamente nada, até por que ele não apenas critica negativamente tais dogmas polêmicos, mas também nos apresentam pessoas simples e dedicadas que realmente se esforçam em fazer o melhor que podem, seja dentro de sua fé ou fora dela.

O fanatismo religioso contra a crise de consciência. Essa é a luta que os membros têm que travar após duvidarem dos ensinos que lhe são repassados nas reuniões. Chega a ser absurdo quando alguém coloca a religião acima do amor pela família, essa é uma das maiores críticas do filme que enfatiza com muita delicadeza e mesmo para as pessoas que não passaram por esse tipo de situação, consegue sentir na pele o sofrimento e a angústia por ter que cortar os laços familiares e em especial por perder um ente querido, quando este prefere à morte do que salvar a própria vida rejeitando transfusão de sangue, apenas por que acredita que Deus quer que seja assim, o sacrifício ao invés do amor a si próprio e pela própria vida.

Apostasy é um filme profundo e delicado, mas que não mede esforços para cutucar na maior das feridas e assim trazer à tona essas situações que são quase que inteiramente ocultas dos que estão fora. As atuações são excelentes e a fotografia do filme é muito bela e combina muito com o tipo de ambiente mostrado no filme. Entendo que o filme não irá agradar a todos, principalmente aos membros da comunidade religiosa em questão, mas não adianta negar que tais dilemas e rompimentos familiares acontecem, principalmente quando o parente não mora mais na mesma casa. Isso não há o que reclamar, o tema abordado no filme foi extremamente fiel à realidade.

ATENÇÃO! A PARTIR DAQUI TERÁ ALGUNS SPOILERS DO FILME. CASO NÃO DESEJE SABER PORMENORES DO QUE ACONTECE NA TRAMA, NÃO SIGA MAIS A LEITURA. O AVISO FOI DADO!

Para quem não conhece direito essa religião, há algumas situações das quais gostaria de frisar aqui e fazer alguns comentários a respeito. Na primeira metade do filme, vemos tudo acontecer de acordo com a ótica de Alex, a garota foi salva no hospital quando nasceu por que recebeu uma transfusão de sangue. Como ela tinha uma doença que exigia que ela realizasse o procedimento com determinada frequência, ela se consultava aos médicos, mas deixava claro que não quer transfusões de sangue, até mesmo entrega um documento para a médica informando de sua decisão e que ninguém podia convencê-la do contrário, ao invés disso, sugeriam tratamentos alternativos que não fizessem uso do sangue.

Sobre esse documento do sangue, pra quem não sabe, toda Testemunha de Jeová batizada porta esse documento que é assinado por duas testemunhas. O interessante é que nenhum membro pode escolher ter esse documento ou não. A congregação exige que eles assinem e carregue consigo, caso aconteça algo, a comunidade religiosa imediatamente entra em ação para impedir qualquer uso indevido do sangue, e se não há tratamentos alternativos disponíveis é melhor morrer do que injetar sangue. Sinistro não é? Esse assunto é muito polêmico, até mesmo algumas Testemunhas de Jeová se sentem incomodadas em ter que falar desse assunto, grande parte delas não entende direito como ou em que se baseiam.

Quando Luísa comunica sua mãe sobre o pecado que cometeu, ela logo culpa a faculdade da filha, que segundo suas palavras a influenciou ignorando os ensinos de Jeová. E eu nem me admirei muito disso não, até por que faculdade toma muito o tempo da pessoa que acaba perdendo reuniões e tal, e para os fieis dessa comunidade religiosa isso afasta as pessoas de Deus e não adianta ter ensino superior em um mundo, que segundo eles, logo irá ter o seu fim na guerra do Armagedom.

Outra situação é quando elas se deparam com críticas à sua fé religiosa, a atitude é completamente vista com maus olhos e considerado uma artimanha satânica para desvia-los do caminho, mesmo que tais questionamentos sejam fortes e não há como responde-los, a orientação é que confiem em Jeová, nada mais. O filme tráz nas entrelinhas diversos aspectos que a congregação impõe sobre os membros e faz com que eles apenas sigam o que lhe foram ensinados, não importa se isso pareça manipulação ou não.

Agora, a mais revoltante das situações é quando os anciãos impedem Ivanna de visitar sua filha desassociada, sem levar em consideração os seguintes fatores: a recente perda de Alex, que morreu por recusar transfusão de sangue, a gravidez de Luísa, e o amor que uma mãe sente pela filha. O filme vai a fundo quando retrata o dilema da jovem desassociada em tentar se reintegrar à Organização por que precisa de sua mãe ao seu lado em momentos difíceis. Durante esse procedimento, a jovem pode até ter pedido perdão a Deus pelo seu erro, mas para ser aceita novamente na comunidade e assim obter de volta o que lhe fora tirado, ela precisa passar por várias etapas que podem durar meses ou até anos, ela precisa provar para os anciões (pastores) que está realmente arrependida e que quer voltar a servir a Deus dentro da congregação, mas isso não ajuda quando sua mãe a visita com determinada frequência, nem mesmo ajuda-la em tarefas domesticas ela pode. E isso causa uma enorme revolta em Luísa e também no espectador.

Para você entender essa situação, irei resumir: Luísa havia ficado grávida e após sua desassociação, ela foi morar sozinha. Alex passou mal durante uma festa entre os membros da comunidade o que resulta em sua morte precoce. Sete meses depois com a gravidez avançada, Luísa passou a receber visitas de sua mãe, principalmente para ajudar a filha nas tarefas domésticas, já que ela não podia fazer. E isso acontecia durante o processo de reintegração da jovem à comunidade, mas as visitas constantes de sua mãe não agradaram os anciãos, que bisbilhotavam a vida das duas para se certificarem de que estavam sendo fieis as regras impostas pela Organização. Olha só que absurdo! Ivanna é impedida pelos anciãos de visitar a filha, considerando que ajudar nas tarefas domésticas não é algo estritamente necessário.

E como acham que isso afetou Luísa? Ela ficou completamente revoltada e desistiu de tentar voltar para a congregação, mas deixou claro que sempre estaria pronta para ajudar sua mãe no que precisar. E como foi a reação de Ivanna? A princípio parecia que ela iria perceber que era uma marionete manipulada para fazer o que os outros querem, fazendo até mesmo ficar longe da própria filha, e iria seguir sua vida com a filha e futura neta, até mesmo durante um discurso no Salão do Reino, onde o ancião falava sobre ter que cortar o contato com filhos desassociados, por que é isso que Jeová espera que façam, e nesse momento Ivanna se levanta de onde estava sentada e sai do local expressando amargura e dor emocional. Porém, eu me surpreendi muito quando o fanatismo de Ivanna a dominou, chegando ao cúmulo de tentar sequestrar a neta recém-nascida, para cria-la dentro da congregação, algo que para ela é como salvar a vida da criança criando-a “na verdade”.

Me desculpem se me alonguei demais na resenha, mas perceba que esse tema é tão profundo que eu poderia continuar escrevendo sobre isso, mas considero que até aqui é o suficiente para entendermos como as pessoas são frágeis por que se deixam dominar pelo que creem, não importando se sua vida, família, casamento e futuro esteja em jogo. E não é apenas com as Testemunhas de Jeová não, existem muitas seitas espalhadas pelo mundo que fazem de seus membros simples marionetes ou robôs, os conduzindo a cometer atos até mesmo suicidas, como no caso retratado no filme O Último Sacramento, que em breve terá uma resenha dele aqui no blog. Em outras palavras, considero que esses temas, embora polêmicos e que dividem opiniões, merecem ser chamados atenção por que são vidas humanas em jogo. Para concluir, ressalto que as Testemunhas de Jeová têm todo o direito de exercer sua fé, como qualquer religião, mas quando acontecem coisas que mexem com a vida humana, é necessário que sejam expostos e o filme Apostasy fez isso muito bem, com imparcialidade e honestidade, por que não se pode mostrar apenas o lado bom para fazer parecer que não há nada de errado, se tem um lado negro e obscuro, é preciso mostra-lo também. 

NOTA: 8,2/10

Até a próxima, bons filmes!

Veja o trailer de Apostasy no vídeo abaixo: